Sobre “Vidas Machucadas”, machucados e recomeços
DOI:
https://doi.org/10.51880/ho.v26i2.1387Resumen
O livro Vidas Machucadas: história oral aplicada foi lançado em janeiro de 2023, pela editora Contexto, tem 192 páginas. É mais uma obra de Leandro Seawright, professor dos cursos de graduação em História (licenciatura e bacharelado), da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados e do Programa de Pós-graduação em História Social da mesma instituição. O autor apresenta, compreende e analisa histórias orais de grupos de pessoas inseridas em comunidades diferentes, algo menos corriqueiro em pesquisas dessa natureza que costumam trabalhar com comunidades de iguais. Seawright escuta os “diferentes” a partir de histórias “iguais” e “desiguais” de forma concomitante e problematiza as diferenças: “comunidade é a relação horizontal - as pessoas são vinculadas, enquanto se arruína a andança solitária pela experiência da vida” (p. 169). Em 2020, Seawright publicou o livro Memórias e Narrativas: história oral aplicada, escrito em coautoria com José Carlos Sebe Bom Meihy.
O livro é prefaciado por Michel Maffesoli, professor emérito da Universidade de Sorbonne e membro do Instituto Universitário da França. O prefácio é significativo não porque Seawright adote as propostas explicativas da sociedade feitas por Maffesoli, mas porque o conceito de “comunidade” em Maffesoli se tornou elemento de diálogo entre ambos. Uma das diferenças importantes é a de que Maffesoli considera o tempo imediato como “pós-moderno”, enquanto Seawright, na obra, explora as crises e o esgarçamento da “modernidade”. Em seguida, faz uma apresentação das comunidades que são “coletivos de sobrevivência” (p. 16), as quais têm em comum os machucados da vida, mas que, apesar disso, permanecem juntas no sentido das trajetórias de memórias semelhantes. Após, discorre sobre escrever a sobrevivência como um passo para além das lembranças ao consubstanciá-las por meio da linguagem oral e, depois, escrita.
Na sequência, Seawright narra cinco histórias de entrevistas orais realizadas entre 2018 a 2022, em Mato Grosso do Sul. O autor problematiza a vida como estancada no lugar que seria só violento ou com desventuras que impediriam o refazimento das trajetórias. Aliás, um fator importante na obra é o questionamento severo do conceito de “vítima”, considerando, em seu lugar, a sobrevivência como alternativa.
Antes de cada história o autor descreve o ambiente da entrevista, o comportamento e os gestos dos entrevistados, assim como das pessoas ao redor. É como se fosse um retrato do local e da pessoa; parece que o leitor é, de súbito, transportado para o local. Essas pessoas não se conhecem mas têm em comum as memórias machucadas. De início, deixa a pergunta: como se sentem aqueles que têm seus direitos violados ou que vivem sob agressões e ameaças? A história oral aplicada, que tem recriado o espaço para uma análise que seria “cuidada”, “dedicada” e “densa”, propõe uma sondagem por meio do empírico, sem ignorar aportes teóricos. O autor trabalha com o conceito de “soberania narrativa”, em que as colaboradoras e colaboradores da pesquisa se autodeterminam por meio da escolha de falar as histórias, mesmo as mais difíceis.
A primeira história é a da Gleice Aguilar dos Santos, mãe, policial militar aposentada do estado de Mato Grosso do Sul, onde trabalhou por 21 anos e atuou, por muito tempo, em defesa das mulheres. Ela intitula a sua história como “história de inconsciência” (p. 37) porque começou a se relacionar cedo e teve quatro casamentos, em quase todos sofreu violências. Ela narra que já foi abandonada grávida, sofreu preconceito por ser mãe solteira e pela pouca idade à época. No caso de outro marido que também era policial, ele sempre ameaçava matá-la e depois se matar; um dia ele cometeu suicídio com um tiro na cabeça.
A segunda é a do Mário José Paradas, venezuelano que mora em Dourados/MS, com a família. Na Venezuela estava no sétimo período do curso de Direito e diz: “Tive que deixar os estudos para me tornar imigrante - que escolha dolorida… [...]” (p. 63), além de não conseguir mais alimentar a família. Conta que um dos principais direitos suprimidos na Venezuela foi a retirada da liberdade de expressão. Aqui, já sofreu muitos preconceitos. Ele deixa um conselho ao povo brasileiro que um dia está no seu país e noutro dia pode ser obrigado a se tornar imigrante. Então, deve valorizar o que tem, visto que ele ainda é um “venezuelano machucado” (p. 74).
A terceira é a da Merina Adelina Ramona, indígena, mãe, moradora do acampamento Itay Ka’aguyrusu, na Terra Indígena Panambi, Lagoa Rica, em Douradina/MS. Ela pertence à etnia Kaiowa, e, por meio da oralidade, versa sobre espiritualidade. Uma narrativa que chama a atenção é aquela de quando era criança e diz que havia muitos moradores xamãs que além de ouvirem, enxergavam as palavras, ela diz: “porque a Palavra é a lembrança e a lembrança se mostra na fala da gente” (p. 87). Relata sobre as rezas, doenças, as curas por meio da natureza, as mortes e os cantos, bem como sobre o renitente esbulho territorial em face dos indígenas
A quarta é a do Marco Antonio Delfino de Almeida, procurador da República, casado, pai, membro do Ministério Público Federal, professor de Direito e doutorando em História. Ele é conhecido na região como um protetor dos direitos das comunidades indígenas Kaiowa, Guarani e Terena. Ele já sofreu racismo no Colégio Militar e na Marinha, porém na época, ainda se tinha (e ainda se tem, mas com alguns avanços positivos) a ideia de um país da “democracia racial”. Destaca também a discriminação racial contra a população indígena no país e a falta de políticos que defendam essa causa. Ele já foi auditor fiscal, mas a impunidade fez com que ele desanimasse com o antigo cargo.
A quinta e última história é a da Márcia Aparecida Rodrigues, mãe, moradora de Douradina/MS. Durante o dia trabalha como auxiliar de saúde bucal e à noite como professora. Seu marido, o Cidinho, também trabalhava na saúde e teve que continuar com a sua dedicação ao trabalho durante as fases mais agudas da pandemia de covid-19, porém mesmo com todos os cuidados, contaminou-se com o vírus. Márcia enfatiza que ele, nos primeiros sintomas, tentou fazer o teste, mas a unidade de saúde negou, quando conseguiu já estava com febre e com falta de ar. Nas palavras dela: “é difícil deixar alguém seu e nunca mais reencontrá-lo” (p. 153). Ela se diz satisfeita em poder contar a sua história, assim se sente aliviada.
O livro Vidas Machucadas, por meio das histórias orais testemunhais transcriadas segundo a metodologia atualizada na obra Memórias e Narrativas: História Oral Aplicada (Meihy; Seawright, 2020), revela as fragilidades da vida, os sentimentos nem sempre expostos, os cacos juntados para prosseguir mesmo que com machucados; alguns cicatrizados ou não, além de sentimentos, problemas, ações e recomeços iguais e desiguais, ocupa-se não apenas ao comum. Mexer nas feridas é por certo dolorido, mas o autor, em meio ao peso das histórias e das teorias com que dialoga no livro, tais como as de gênero, as raciais sobre a população indígena e negra; das injustiças sociais, políticas, dos direitos humanos, sobre as memórias, entre outras, escreve em “tom poético” (preservando o eu lírico), o que alivia e sensibiliza a leitura das experiências dolorosas. Quanto às experiências solitárias, algumas vezes é assim mesmo, difícil. Porém ainda temos partilhas e, dessa forma, o poder de narrar e de recomeçar é revelado nas cinco histórias. “O que se sabe é que, onde quer que exista um sobrevivente, haverá sempre história oral como possibilidade” (p. 29).
Citas
Referências
MEIHY, José Carlos Sebe Bom; SEAWRIGHT, Leandro. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020.
SEAWRIGHT, Leandro. Vidas machucadas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2023.
Descargas
Publicado
Cómo citar
Número
Sección
Licencia
Derechos de autor 2023 História Oral
Esta obra está bajo una licencia internacional Creative Commons Atribución-NoComercial-SinDerivadas 4.0.
A revista História Oral é licenciada de acordo com a atribuição Creative Commons BY-NC-ND 4.0 (Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional). Dessa forma, os usuários da revista têm o direito de compartilhar livremente o material, copiando-o e redistribuindo-o em qualquer suporte e formato, desde que sem fins comerciais, fornecendo o crédito apropriado e não realizando mudanças ou transformações no material. Para maiores informações, ver: https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt_BR